O senhor Rafael era rico e disso não fazia segredo. O filho do senhor Rafael menos ainda, se pensarmos que tinha 7 anos e andava na escola – quer dizer, no colégio –, como quase todos os meninos da sua idade.
– Quase todos?!! – Perguntou-me um dia.
– Sim. Quase todos. Há muitos meninos da tua idade que não vão para a escola. – Respondi-lhe.
– Porque não querem? – Continuou a mostrar-se interessado.
– Não. Porque não podem. – Disse-lhe, sem no entanto transmitir uma carga demasiadamente pesada à minha opinião.
– Não podem porquê? – Insurgiu-se ele.
– Olha, por várias razões: porque não há escolas perto das suas casas, porque precisam de trabalhar, porque não têm dinheiro… – Ia-lhe dizendo, calmamente, assim em tom de avô paternal.
– Não têm dinheiro?!!! – Espantou-se o filho do senhor Rafael.
– Sim. – Respondi-lhe, seco. Como se ele tivesse culpa de ser filho do senhor Rafael!
– E eu posso comprar uma escola e dar a esses meninos? – Sugeriu, inocente.
– Poder, podes. Só que não é assim tão fácil. – Fui-lhe dizendo, atrapalhado. – Para uma escola funcionar é preciso muito mais do que dinheiro.
– E isso que é preciso para uma escola funcionar como é que se arranja? – O seu entusiasmo era visível.
– Com dinheiro… – O meu embaraço era mais que evidente.
– Então… – Sorriu, como se tivesse descoberto a solução do mundo.
– Por exemplo… – Comecei, decidido. – Na Ásia, na América do Sul ou em África há muitos meninos que não conseguem nem sequer comer ou vestir e muito menos ir à escola.
– África? – Intrigou-se.
– Sim. África. Por exemplo. – Confirmei.
– É grande África? – Curiosidade…
– É enorme! E lindo. Do outro mundo… Quer dizer… do nosso mundo, mas tão maravilhoso que até custa a acreditar que também se encontre lá tamanha pobreza e decadência! – Letal.
– Posso comprar… – Laboratorial.
– Não. Não podes. Nem tu nem ninguém. – Decidido. – África é um Continente, cheio de países e os países não se compram.
– O meu pai acha que não. – Adulto. – Ele diz que o mundo é de meia dúzia de pessoas.
– Pois… Mas isso é outra conversa.
E aqui acaba o meu diálogo com o filho do senhor Rafael. Quer dizer… não acaba. Eu é que decidi acabar. Realmente! Onde chega a infância… Por um lado admite que tudo é pertença dos poderosos; por outro, ao mesmo tempo, acha-se capaz de ser também poderoso, ao pensar que o seu dinheiro pode comprar isto e aquilo… Estou fascinado.
Fascinado com esta linguagem da fantasia que nos vai permitindo escrever sobre tudo e mais alguma coisa e ir expondo as nossas inquietações através de personagens criados propositadamente. Fascinado com a nossa capacidade de sermos ridículos quando não assumimos as palavras para dizer o que pensamos. Sim, as palavras. As palavras certas e certeiras. E sabem porquê? Porque seria fácil e quem sabe popular elaborar um escrito politica e eticamente fervoroso contra o domínio dos poderosos e da finança; um texto forte e directo. Sem poesia e até com vocabulário mais agressivo.
– Porque não podemos comprar as palavras? – Interrogou-me de novo o filho do senhor Rafael.
– As palavras não se vendem. Todos as podemos usar. – Respondi. – Temos é de ter cuidado com a forma e o lugar onde as usamos.
– Porquê? – Cirúrgico.
– Ora… porque as palavras que dizemos ou escrevemos normalmente não são ouvidas ou lidas da forma como queremos. – Catedrático.
– Não?! E se comprarmos também quem as ouve ou as lê? – Insistente!
– Deves pensar que tudo se compra, ó rapazinho! – Farto.
– O meu pai acha que sim. – De novo.
Andamos às voltas nos mesmos problemas e não chegamos a lado nenhum. Corremos o risco até de baralhar alguns mais lúcidos e arrumadinhos na vida e nos princípios. “Poderemos comprar um fim?”, ter-me-ia perguntado o filho do senhor Rafael. Mas sabem porque não pergunta?
Porque o filho do senhor Rafael não existe. Porque cada um de nós é filho do senhor Rafael.
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oTeMp0
O tempo que passa Leva uma flor ao vento Que se faz poesia e raça Fonte, porta e lamento Curva-se o peregrino Sem ter medo da desgra...
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A minha calçada é um manto frio Que me cobre de inquietação Foge-me dos pés, em forte arrepio Curva-se-me em lágrima e canção A minha calça...
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Há um silêncio de memórias nos rostos que dormem sobre os lábios que esperam. No aroma dos frutos caídos. Na ternura das palavras. De ti. E...
7 comentários:
É verdade!!... cada um de nós "é" um filho do senhor Rafael, não tendo culpa de tal... ao nascer já viemos com um umbigo, que fazia, e continua a fazer parte de nós toda a vida, ao qual gostamos de dar a nossa maior atenção... Depois, e desde que nascemos também, nos fazem sentir que somos corpo desta sociedade, que concordemos ou não, ajudamos a construir... Os poderosos continuarão sempre a pensar que tudo podem ter, os que não o são, continuam a acreditar que um dia o vão ser...
bjinhos
Posso estar em completo desacordo?
Com a última frase, é evidente. Eu não acho que cada um de nós seja obrigatoriamente filho do snr. Rafael.
O que eu acho é que se calhar não nos esforçamos o suficiente para mudar mentalidades e conjunturas que permitem que ainda haja filhos do snr. Rafael...
É um texto para um "brain storming" de fim de semana...
Fica bem
Uma vez estava numa sala de aula com alunos do 4º ano, a conversar com o Professor Agostinho da Silva. Uma criança perguntou-lhe o que poderíamos fazer para melhorar o mundo. "Pergunta clichê...", pensei eu. A maior lição veio a seguir. O sábio e eterno Professor apontou para um papel no chão e disse: "Podes começar por apanhar aquele papel ali."
é precisamente nessa atitude, nesse "apanhar o papel que está aqui", que eu acredito. cada um de nós tem o poder de melhorar o respectivo mundo. afinal o nosso planeta é feito pelos nossos mundos, todos cruzados e interligados!
abraço
há palavras que não devem ficar nas catacumbas;)
Obrigada pela visita!
E sabes acho que qq dia da maneira como isto anda até as palavras se vendem...
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